Na última terça-feira, a Câmara dos Deputados italiana aprovou em definitivo um decreto-lei proposto pelo governo Meloni que endurece as regras para o reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis — em especial para os descendentes de italianos que vivem no exterior, muitas vezes já na quarta geração (bisnetos). O texto, fortemente apoiado pelo ministro das Relações Exteriores Antonio Tajani, visa combater o que o governo chama de “abusos” no uso do passaporte italiano como um simples “benefício de conveniência” por descendentes distantes.
O novo decreto substitui a legislação de 1992, elaborada sob a liderança de Giulio Andreotti, e tem como objetivo principal dificultar o reconhecimento da cidadania quando há um afastamento muito grande no grau de descendência. O pano de fundo é o crescimento exponencial de processos administrativos e judiciais movidos por descendentes de italianos — sobretudo brasileiros e argentinos — interessados nos benefícios de um passaporte europeu, mesmo que o vínculo cultural com a Itália seja quase nulo.
A Retórica Curiosa da Oposição
Como esperado, o Partito Democratico (PD) votou contra a medida, ao lado dos demais partidos da oposição. Mas o que surpreendeu observadores e analistas foi o tom adotado pela bancada democrata: em vez de uma crítica meramente técnica, o PD recorreu a uma retórica quase patriótica, evocando a dor da emigração italiana, o vínculo sentimental dos italianos com sua diáspora e, curiosamente, homenagens repetidas a Mirko Tremaglia — ex-ministro do governo Berlusconi e histórico militante da extrema-direita neofascista.
Elly Schlein, secretária do partido, chegou a afirmar em um programa televisivo que “os netos das vítimas de Marcinelle não teriam mais direito à cidadania”, classificando o novo decreto como “uma medida incompreensível”. A frase toca fundo na memória coletiva italiana, já que Marcinelle remete ao trágico incêndio de 1956 em uma mina de carvão na Bélgica, onde morreram 136 italianos emigrados.
A Herança de Tremaglia: Um Fantasma que Serve aos Dois Lados
O trecho mais controverso do debate aconteceu quando parlamentares do PD passaram a elogiar de forma quase reverencial Mirko Tremaglia, autor da lei que criou o voto dos italianos no exterior. Tremaglia, falecido em 2011, foi um expoente do Movimento Sociale Italiano (MSI), partido herdeiro direto do fascismo, e nunca renegou sua adesão à República Social Italiana — o regime colaboracionista fundado por Mussolini sob a proteção de Hitler no norte da Itália, após 1943.
Ainda assim, nomes do PD como Piero Fassino, Nicola Carè, Christian Di Sanzo e Fabio Porta fizeram discursos emocionados em homenagem ao deputado da extrema-direita, agora convenientemente relembrado como “pai dos italianos no exterior”. Em tom de reprimenda, Fassino chegou a dizer que “vocês [da direita] estão destruindo tudo isso”, provocando a ira de Andrea Tremaglia — neto de Mirko e deputado por Fratelli d’Italia — que ironizou: “Mas por que o PD precisa ensinar quem foi o meu avô?”
A resposta veio carregada de ironia: Tremaglia, um tenente da República Social Italiana, agora seria promovido — ainda que postumamente — ao “panteão da esquerda”. A polêmica gerou risos nervosos, protestos e, claro, uma série de postagens indignadas nas redes sociais de ambos os lados.
Interesses Ocultos: O Peso do Voto Expatriado
Além da retórica emocionada, o embate esconde um elemento menos simbólico e mais pragmático: os 12 assentos parlamentares reservados à Circunscrição Eleitoral do Exterior. Nas últimas eleições, o PD conquistou sete dessas vagas — quatro na Câmara, três no Senado — consolidando uma base sólida entre os eleitores expatriados, particularmente fora da América do Sul. O voto exterior é historicamente mais progressista e conectado às redes de associações comunitárias, nas quais o PD investe com afinco.
Assim, a defesa da cidadania ampla e irrestrita não é apenas uma questão de princípio, mas de matemática eleitoral. Ao restringir o acesso à cidadania, o governo também restringe o eleitorado — e o PD sabe bem que, sem essa base, sua presença no Parlamento enfraquece.
Um Jogo de Espelhos
O que se viu no Parlamento italiano foi um jogo de espelhos: uma direita nacionalista buscando limitar o acesso à cidadania por razões administrativas, enquanto parte da esquerda, tradicionalmente crítica ao legado neofascista, recorre a ícones da extrema-direita para proteger seus próprios interesses políticos.
Nesse teatro político, não é a cidadania que está no centro — mas o controle sobre quem vota e para quem. E se para isso for necessário adotar uma retórica nacionalista, fazer vista grossa à biografia de ex-fascistas ou mobilizar a dor da emigração histórica, que assim seja.
Porque, no fim das contas, mais do que defender bisnetos ou raízes italianas, o que está em jogo é a disputa por corações, votos — e passaportes.