- O imaginário sombrio dos Alpes
- Criaturas das montanhas: monstros que vigiam as alturas
- Espíritos guardiões: quando o medo também protege
- Bruxas do Sciliar: tempestades e sabedoria antiga
- Krampus: o demônio do Natal alpino
- Perchta e as Perchten: a deusa sombria do inverno
- Mitos de inverno: noites longas, medos profundos
- Lendas das Dolomitas: bruxas, anões e princesas pálidas
- Salváns, saligenas e seres da floresta
- Orcolat: o monstro dos terremotos friulanos
- Bruxas, espectros e pesadelos da península
- Como os italianos do norte contam essas histórias hoje
- O que essas lendas revelam sobre os povos alpinos
As lendas alpinas misturam montanhas perigosas, invernos rigorosos e crenças ancestrais em criaturas das montanhas, espíritos guardiões e mitos de inverno que ainda hoje fazem parte da identidade do norte da Itália, sobretudo nos vales do Tirol do Sul, do Trentino e das Dolomitas. Para quem acompanha a La Via Italia e sonha em viver no norte italiano, entender essas histórias é também compreender o imaginário profundo das comunidades alpinas, onde o clima, o relevo e a solidão moldaram medos e rituais de proteção transmitidos de avós para netos até os dias atuais.
O imaginário sombrio dos Alpes
Os Alpes italianos sempre foram vistos como um território limítrofe entre o humano e o sobrenatural: paredes de rocha, desfiladeiros, florestas fechadas e nevascas criaram o cenário perfeito para que lendas assustadoras florescessem como forma de explicar avalanches, tempestades e desaparecimentos nas montanhas. Em muitas aldeias alpinas, a fronteira entre o mundo visível e o invisível é especialmente “fina” durante o inverno, quando as noites são mais longas, e é justamente nesse período que ganham força figuras como bruxas, demônios invernais, espíritos da neve e criaturas guardiãs dos vales.
Esses mitos alpinos não são apenas histórias de terror contadas para assustar crianças; eles funcionam como um código moral coletivo, avisando sobre os perigos de se aventurar sozinho na montanha, de desrespeitar a natureza ou de quebrar regras de convivência comunitária durante o inverno, quando todos dependem de todos para sobreviver. Ao mesmo tempo, muitas lendas preservam traços de cultos pagãos antigos – deidades da neve, divindades das florestas e figuras femininas poderosas – que foram sendo cristianizados ao longo dos séculos, mas nunca desapareceram completamente da cultura popular.
Criaturas das montanhas: monstros que vigiam as alturas
Nas regiões alpinas de língua germânica e ladina, integradas hoje ao território italiano, surgem várias criaturas das montanhas que encarnam o medo do desconhecido e o respeito à altitude extrema. Em muitos vales, fala-se de gigantes, homens-fera e seres peludos que vivem nos rochedos mais altos, observando silenciosamente quem se arrisca em trilhas remotas, especialmente no inverno, quando qualquer erro pode ser fatal.
Um exemplo é o Gigàt (ou Gigiàt), figura da tradição alpina lombarda descrita como um monstro gigantesco semelhante a uma cabra ou camurça, coberto por pelos longos e densos. Apesar de vegetariano, o Gigàt seria imprevisível, às vezes atacando viajantes solitários ou caminhantes que se afastam demais dos caminhos conhecidos, reforçando o aviso para nunca subestimar a montanha. Nessa lógica, o monstro funciona como uma personificação do próprio perigo alpino: belo à distância, mas implacável com quem o desafia sem preparo.
Também nas lendas ladinas das Dolomitas aparecem os Salváns (ou Salvans), seres associados às florestas de altitude, descritos como espíritos selvagens que vivem entre os pinheiros e se irritam quando humanos invadem seus domínios com desrespeito. Em muitas histórias, os Salváns castigam lenhadores gananciosos, caçadores que matam além do necessário ou forasteiros que zombam das tradições locais, reforçando a ideia de que a montanha “observa” e responde a comportamentos desequilibrados.
Espíritos guardiões: quando o medo também protege
Ao lado das criaturas ameaçadoras, o folclore alpino fala de espíritos guardiões que vigiam passagens, bosques e cumes, muitas vezes punindo quem abusa da natureza, mas protegendo quem mostra respeito e humildade. Em diversas lendas do Tirol do Sul e dos vales ladinos, esses espíritos podem assumir forma humana, animal ou de luzes distantes que aparecem para guiar viajantes durante tempestades de neve e neblina intensa.
Nas narrativas das Dolomitas, por exemplo, surgem figuras de fadas de montanha, anões e espíritos luminosos que intervêm em momentos de perigo, indicando o caminho de volta à aldeia ou avisando sobre avalanches iminentes. Embora nem sempre sejam descritos como benevolentes – muitos são temperamentais e não toleram desrespeito – funcionam como uma espécie de consciência ecológica ancestral, lembrando que sobreviver nos Alpes exige prudência e reverência às forças naturais.
Bruxas do Sciliar: tempestades e sabedoria antiga
Entre as lendas mais fortes do norte da Itália estão as das Bruxas do Sciliar (Schlernhexen), associadas ao maciço do Sciliar, nas Dolomitas, hoje símbolo do Tirol do Sul. Desde a Idade Média, o planalto e os picos do Sciliar são vistos como lugar de reunião de bruxas, criaturas mágicas e espíritos que se encontram no alto da montanha para realizar rituais, especialmente durante noites de tempestade.
Segundo muitas histórias, as Bruxas do Sciliar seriam responsáveis por conjurar tempestades violentas, granizo e ventos repentinos que caem sobre os vales sem aviso, assustando os moradores e rebanhos. Em versões mais antigas, porém, essas bruxas também aparecem como mulheres ligadas ao conhecimento das ervas, da cura e dos ciclos da natureza, o que sugere raízes em cultos pré-cristãos de divindades femininas das montanhas. O processo histórico de demonização dessa figura teria transformado antigas sacerdotisas em vilãs temidas, associadas ao caos climático.
Hoje, trilhas e mirantes na região do Alpe di Siusi (Seiser Alm) ainda exploram a fama das “montanhas das bruxas”, e guias locais contam histórias de encontros misteriosos, animais que pressentem tempestades e vultos observados durante trovoadas. Turistas muitas vezes chegam atraídos pela paisagem idílica das Dolomitas, mas saem com a sensação de que há algo de inquietante naquela combinação de beleza extrema e clima imprevisível – exatamente o tipo de sensação que as lendas sempre quiseram transmitir.
Krampus: o demônio do Natal alpino
Nenhuma figura dos mitos de inverno alpinos é tão icônica quanto o Krampus, o chamado “diabo do Natal” que percorre vilas do Tirol do Sul e de outras regiões alpinas durante o Advento. Nesses desfiles, conhecidos como Krampuslauf, homens se vestem com peles escuras, máscaras aterrorizantes, chifres, correntes e sinos, correndo pelas ruas e interagindo com o público em uma mistura de espetáculo folclórico e catarse coletiva.
A lenda diz que o Krampus é o companheiro sombrio de São Nicolau, encarnando o lado punitivo que assusta as crianças desobedientes enquanto o santo recompensa as obedientes. As origens do personagem, no entanto, apontam para rituais pagãos ligados ao solstício de inverno, com raízes em antigas divindades das florestas e dos espaços selvagens. Alguns estudiosos relacionam o Krampus a deuses como Cernunnos, figura celta cornuda das florestas, ou a Silvano, deus romano das matas, indicando que a figura demoníaca atual é a cristianização de um espírito da natureza muito mais antigo.
Nas aldeias do Tirol do Sul, os desfiles de Krampus continuam vivos e são eventos aguardados no calendário de inverno, atraindo tanto moradores quanto turistas curiosos. Para muitos italianos do norte, ver o Krampus correr pelas ruas, com sinos estrondosos e chocalhos metálicos, é uma experiência que mistura medo, fascínio e orgulho de uma tradição que sobreviveu à modernização e, recentemente, ganhou até projeção internacional.
Perchta e as Perchten: a deusa sombria do inverno

Ligada ao mesmo universo simbólico do Krampus, mas com raízes ainda mais profundas, está a figura de Perchta (ou Frau Perchta), uma antiga divindade de inverno do mundo alpino que hoje muitas vezes é chamada de “bruxa do Natal” ou até de “Krampus feminina”. Em várias regiões alpinas, inclusive próximas às fronteiras italianas, sobrevivem procissões de Perchten, figuras mascaradas que desfilam entre o período de Natal e a Epifania, ora assustando, ora abençoando as casas.
Nas narrativas tradicionais, Perchta assume formas contrastantes: pode aparecer como uma bela mulher de branco ou como uma anciã de aspecto terrível, por vezes com um pé deformado, semelhante ao de ganso. Em muitas lendas, ela lidera um cortejo de espíritos e demônios durante as noites mais escuras do ano, verificando se as pessoas cumpriram suas tarefas domésticas, respeitaram os períodos de jejum e honraram as normas comunitárias; quem obedece é protegido, quem desobedece sofre castigos simbólicos descritos de forma extremamente gráfica.
Do ponto de vista histórico, estudiosos veem em Perchta a sobrevivência de uma grande deusa alpina, poderosa figura feminina ligada aos ciclos sazonais, à ordem doméstica e à justiça comunitária. Com a cristianização, a divindade foi transformada em bruxa temida, mas seu cortejo e suas “visitas” de inverno continuaram vivos em festas populares, inclusive em áreas de influência cultural germânica que hoje fazem parte da Itália, como o Tirol do Sul. Para quem mora nos Alpes italianos, portanto, o inverno não é apenas uma estação climática, mas também um período “vigiado” por antigas forças femininas que simbolizam controle, disciplina e medo do caos.
Mitos de inverno: noites longas, medos profundos
Os mitos de inverno alpinos expressam de forma direta a vulnerabilidade das comunidades de montanha diante do frio extremo, da fome e do isolamento. Em muitas aldeias, acreditava-se que as Rauhnächte, as “noites brutas” entre o Natal e a Epifania, eram o momento em que espíritos, demônios e mortos vagavam livremente, exigindo que as famílias se mantivessem em casa, com janelas fechadas, fogo aceso e rituais de proteção.
Essas histórias também ajudavam a controlar comportamentos em períodos críticos: durante o inverno, era fundamental economizar comida, respeitar o trabalho doméstico e manter a casa em ordem, porque qualquer falha podia comprometer a sobrevivência do grupo. Figuras como Perchta, os Perchten e até o próprio Krampus funcionam como representantes simbólicos das consequências de quebrar essas regras, tornando o medo um instrumento de disciplina social.
Lendas das Dolomitas: bruxas, anões e princesas pálidas
As Dolomitas, hoje Patrimônio Mundial e destino queridinho de turistas, são também um dos centros mais ricos em lendas alpinas do norte da Itália. Desde o século XVII há registros de contos sobre anões, fadas, espíritos e bruxas que explicam fenômenos naturais das montanhas, como o brilho das rochas, as cores do pôr do sol e as mudanças súbitas no clima.
Uma das narrativas mais conhecidas é a da Princesa da Lua e dos anões que “tecem” raios de luar em torno das montanhas para torná-las brancas e luminosas, criando a imagem das “montanhas pálidas”, expressão frequentemente usada para descrever as Dolomitas. Embora essa história tenha um tom mais poético do que assustador, muitas outras lendas do mesmo território falam de bruxas que causam tempestades, espíritos que desviam viajantes e vozes misteriosas que ecoam em vales isolados, reforçando a sensação de que as montanhas têm vontade própria.
Salváns, saligenas e seres da floresta
Nos vales ladinos – comunidades de língua ladina espalhadas pelas Dolomitas – é forte a presença de seres como os Salváns e as saligenas, espíritos da floresta que ora ajudam, ora punem. Os Salváns costumam ser descritos como homens selvagens, cobertos de pelos, que habitam as florestas altas e observam à distância as aldeias humanas, mantendo um equilíbrio tenso entre aproximação e hostilidade.
Já as saligenas aparecem em alguns contos como mulheres ou fadas das montanhas, às vezes belas e generosas, às vezes perigosas, personificando uma natureza que oferece recursos – água, madeira, pasto – mas não tolera abuso ou desrespeito. Esses seres reforçam o papel da floresta como espaço sagrado e perigoso ao mesmo tempo, lembrando que, para os povos alpinos, não existe neutralidade na relação com o ambiente: a natureza observa, responde e, muitas vezes, exige contrapartidas.
Orcolat: o monstro dos terremotos friulanos
Na região alpina do Friuli, ao nordeste da Itália, existe a figura do Orcolat, criatura mítica associada aos terremotos que atingem a área. Ele é descrito como um ser monstruoso preso nas montanhas de Carnia, cuja agitação interna provoca tremores de terra, deslizamentos de rocha e destruição nas aldeias.
O Orcolat funciona como uma tentativa de dar rosto e intenção a um fenômeno natural imprevisível e devastador, transformando o medo sísmico em uma narrativa compreensível, especialmente para crianças. Mesmo depois de grandes terremotos históricos na região, essa figura continuou presente nas histórias orais, mostrando como o folclore pode sobreviver e dialogar com a memória de desastres reais.
Bruxas, espectros e pesadelos da península

Embora o foco aqui sejam os povos alpinos, muitas figuras do folclore italiano dialogam com o imaginário de medo e montanha presente no norte. Criaturas como a Borda, uma bruxa cega que circula em áreas pantanosas e enevoadas da planície do Pó, e a Pantafica, espectro ligado à paralisia do sono que sufoca as pessoas dormindo, mostram como diferentes regiões criaram personificações para perigos ambientais e sensações de pavor noturno.
Apesar de não serem exclusivas dos Alpes, essas figuras influenciam a forma como o medo é narrado na cultura italiana em geral, incluindo o norte montanhoso. Muitas famílias migram internamente com suas próprias lendas, fazendo com que histórias originalmente associadas a pântanos, castelos ou vilas rurais circulem também nas cidades alpinas modernas, alimentando um mosaico de crenças que se sobrepõem.
Como os italianos do norte contam essas histórias hoje
Nas aldeias alpinas do Trentino-Alto Ádige/Südtirol e de outras áreas de montanha, avós ainda contam histórias de bruxas, Krampus, Salváns e espíritos de inverno para crianças, especialmente durante as noites longas de dezembro e janeiro. Essas narrativas se misturam a festas locais, como os desfiles de Krampus e celebrações ligadas às Perchten, preservando costumes que, ao mesmo tempo, assustam e divertem.
Além dos contextos familiares, o turismo de montanha também ajudou a manter vivas essas lendas alpinas, com museus, trilhas temáticas, festivais e apresentações folclóricas que exibem máscaras tradicionais, figurinos de bruxas e reconstruções de cenas míticas. Para muitos moradores, o orgulho de exibir suas tradições vai além do marketing turístico: é uma maneira de dizer que, por trás das paisagens perfeitas do norte da Itália, existe um mundo simbólico antigo, feito de medo, respeito e convivência constante com a natureza extrema.
O que essas lendas revelam sobre os povos alpinos
As lendas mais assustadoras dos povos alpinos mostram um traço comum: a consciência de viver em um ambiente ao mesmo tempo belo e perigoso, onde o erro humano pode custar caro. Personagens como Krampus, Perchta, Bruxas do Sciliar, Salváns, Gigàt e Orcolat não são apenas monstros gratuitos; eles encarnam medos reais – de tempestades, avalanches, terremotos, fome, isolamento e desordem social – que as comunidades precisaram administrar ao longo de séculos.
Para quem acompanha a La Via Italia e pensa em se mudar para o norte da Itália, conhecer esses mitos de inverno, criaturas das montanhas e espíritos guardiões é uma forma de se aproximar do lado mais profundo da cultura local. Em muitas aldeias alpinas, ainda hoje, a paisagem não é apenas um cenário turístico: é um território povoado por histórias, onde cada penhasco, floresta e passo de montanha carrega, silenciosamente, uma lenda pronta para ser contada à luz da lareira em uma noite de neve.

































