RESUMO
Sem tempo? A Lili IA resume para você
A cidadania italiana por jus sanguinis ou seja, por descendência tem sido, por décadas, um elo de ligação legítimo entre o Estado italiano e milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Contudo, a lentidão extrema e a falta de estrutura dos consulados italianos no exterior têm transformado esse direito constitucional em um privilégio de poucos: aqueles que têm tempo, dinheiro ou acesso a vias alternativas para conseguir o reconhecimento da cidadania.
A Corte Constitucional italiana marcou para o próximo dia 24 de junho a audiência em que será discutida a questão da inconstitucionalidade relacionada à legislação vigente. Durante essa sessão, os ministros examinarão os argumentos sobre possíveis incompatibilidades entre a norma em questão e os preceitos estabelecidos na Constituição Italiana. A decisão da Corte terá impacto significativo na aplicação e interpretação do direito no país.
Casos de espera que ultrapassam dez ou até doze anos para um simples primeiro agendamento tornaram-se comuns em cidades como São Paulo, Buenos Aires e Nova York. A frustração dos descendentes italianos, somada à percepção de abandono institucional, tem levado muitos requerentes a buscar vias judiciais diretamente na Itália, criando um cenário de judicialização que expõe desigualdades e falhas de governança.
Enquanto isso, muitos requerentes desprovidos de meios financeiros ou jurídicos simplesmente desistem, evidenciando uma discriminação econômica estrutural.
A Constituição Italiana, ao definir o conceito de “povo”, articula-o com os pilares de território e soberania para compor a ideia de “República”. O reconhecimento irrestrito da cidadania por filiação colide com essa definição clássica e pode, segundo juristas, colocar em risco tanto a coesão nacional quanto o cumprimento de obrigações internacionais, especialmente no contexto da União Europeia, que compartilha parte da gestão migratória e de cidadania entre os Estados-membros.
A crise nos consulados e o colapso do sistema de agendamento expõem uma ferida institucional que vai além da eficiência administrativa: trata-se de uma questão de justiça, igualdade de acesso e definição de identidade nacional. Até lá, o que se vê é um sistema que favorece os mais preparados financeiramente e penaliza os mais vulneráveis, perpetuando uma cidadania que é menos um direito e mais um desafio.
A Cidadania no Vazio Constitucional
Embora seja uma das colunas estruturantes do pertencimento à República Italiana, a cidadania não encontra na Constituição Italiana um direito claramente definido e garantido. Esta omissão, muitas vezes negligenciada, tem consequências profundas quando analisamos o atual impasse envolvendo o reconhecimento da cidadania por jus sanguinis, especialmente para descendentes no exterior.
De fato, conforme estabelecido pela Corte Costituzionale no despacho n. 490 de 1988, a Constituição Italiana não contém disposições específicas sobre cidadania, nem garante expressamente o direito à cidadania em si. O único dispositivo que a menciona de forma direta é o artigo 22, que afirma que “ninguém pode ser privado, por motivos políticos, da cidadania, da capacidade jurídica ou do nome.” Trata-se, portanto, de uma cláusula de salvaguarda, e não de atribuição positiva de direitos.
Ainda que o termo “cidadãos” apareça em diversos outros artigos constitucionais como no art. 48, que concede aos cidadãos o direito ao voto, ou no art. 51, que exige a cidadania para o exercício de cargos públicos em nenhum momento a Constituição define quem é cidadão, como se adquire ou se perde tal status, ou mesmo em que condições ele pode ser transmitido.
A cidadania é, assim, um pressuposto para a fruição de direitos políticos e civis, mas não um direito fundamental com disciplina constitucional autônoma. Isso criou, ao longo das décadas, um campo fértil para disputas interpretativas, lacunas legislativas e amplas margens de discricionariedade política e administrativa.
Contudo, quando se trata de exercer a cidadania como vínculo político pleno — votar, ser votado, ocupar cargos públicos ou representar a República — o estatuto formal de cidadão permanece indispensável.
Nesse contexto, a ausência de um reconhecimento expresso e detalhado na Constituição torna ainda mais grave o colapso dos canais administrativos, especialmente nos consulados.
O dever de fidelidade e o paradoxo do não reconhecimento
Outro ponto que merece destaque é o art. 54 da Constituição, que estabelece que “todos os cidadãos têm o dever de ser fiéis à República e de observar a Constituição e as leis.” É uma formulação que impõe um dever cívico e ético a quem possui a cidadania italiana — inclusive àqueles que residem no exterior.
Aqui surge um paradoxo: milhões de descendentes que legalmente teriam direito à cidadania italiana e, portanto, ao dever de fidelidade à República permanecem à margem por inércia institucional. Ainda que compartilhem valores, cultura, ou mantenham vínculo jurídico por meio do jus sanguinis, esses indivíduos são excluídos por um sistema consular incapaz de responder à demanda e por um modelo normativo que oscila entre a omissão e o excesso.
Neste vácuo entre o que a Constituição diz e o que omite, entre os direitos prometidos e os negados, emerge uma necessidade urgente: repensar a cidadania não apenas como uma herança de sangue, mas como um pacto republicano acessível, justo e transparente para todos. Essa concessão indiscriminada compromete não apenas a coesão cultural do país, mas também a integridade de seus processos democráticos e o próprio funcionamento das instituições republicanas.