Em essência, ser cidadão é pertencer a uma comunidade política. Pode parecer uma definição seca, técnica, mas ela carrega em si a complexidade de séculos de história, debates e transformações. Cidadania, afinal, não é apenas um número em um documento ou um carimbo no passaporte. É também um sentimento. Uma construção. Um debate vivo.
Nas suas bases legais, a cidadania é o vínculo jurídico entre o indivíduo e o Estado — um contrato que confere direitos e impõe deveres. E é nesse contrato que nasce, teoricamente, o princípio da igualdade. Todos somos iguais diante da lei. Todos devemos ser tratados da mesma forma.
Mas o que nos torna, de fato, pertencentes a um país?
A resposta deveria ser simples, mas raramente é. A cidadania, ao lado da legalidade, carrega um peso invisível: o da identidade. E identidade não se comprova com certidão de nascimento. Ela é subjetiva, emocional e muitas vezes conflituosa.
Língua, aparência, religião: os limites do pertencimento
O que significa “ser italiano”? Falar italiano? Mas qual italiano — o padrão, o dialeto, o sotaque regional? Ter nascido em território italiano? Ter pais italianos? Ter a pele clara? Comer lasanha ao domingo? Amar a moda italiana? Tudo isso parece importar… e ao mesmo tempo, nada disso é suficiente.
A cor da pele ainda define quem é reconhecido ou não como pertencente. Um jovem nascido e crescido em Palermo, com pais africanos, que fala o idioma, frequenta a escola, respeita as leis — é menos italiano do que alguém nascido em Zurique com sobrenome italiano, mas que nunca viveu no país? Perguntas desconfortáveis, mas que merecem ser feitas.
Em um país que abriga italianos de mil nuances — lombardos e calabreses, sicilianos e piemonteses, todos com culturas, cozinhas e costumes distintos — a ideia de uma identidade única parece cada vez mais uma ficção.
Dupla cidadania e múltiplas verdades
A Itália é, hoje, um país de identidades compostas. Suíço-italianos, brasileiros-italianos, albaneses-italianos. A identidade não é mais estática, mas fluida. E negar isso é negar a realidade de uma sociedade em transformação.
Mais da metade dos italianos residentes fora da Itália possuem dupla cidadania. Isso não os faz menos italianos — pelo contrário. Atravessaram gerações preservando o idioma, o afeto e a conexão cultural com suas raízes. A Itália mora na língua, na música, no almoço de domingo, no orgulho de um sobrenome.
Por isso, não é estranho defender que a cidadania vá além da certidão. Ela deve incluir o pertencimento real, emocional e social. Cidadão é quem vive como tal, quem contribui, quem participa, quem sente.
Quando o “outro” somos nós
A discussão sobre quem pode ser cidadão costuma esbarrar no medo do “outro”. O estrangeiro. Aquele que — na visão mais conservadora — viria se aproveitar do sistema, sem dar nada em troca. Mas quem define quem é “estrangeiro”? Em um país construído por séculos de imigração, por culturas que se sobrepõem e se transformam, quem pode jogar a primeira pedra?
A proposta de reduzir o tempo mínimo de residência legal na Itália, de 10 para 5 anos, para que um estrangeiro adulto não-europeu possa solicitar a cidadania, reacende essa discussão. Para muitos, é uma medida de civilidade. Para outros, uma ameaça.
Mas talvez a pergunta mais urgente seja: qual é o futuro que queremos construir? Um país de muros altos e critérios estreitos, ou uma nação consciente de sua diversidade e aberta a quem deseja, sinceramente, fazer parte dela?
Cidadania é um espelho
Cidadania, no fim das contas, não é apenas um direito. É um reflexo de como escolhemos nos enxergar como sociedade. Se a identidade italiana — assim como a suíça, a brasileira, a francesa — é complexa, híbrida, em mutação constante, então talvez devêssemos olhar menos para fronteiras e mais para vínculos reais.
Porque mais importante do que “de onde viemos”, é onde e com quem escolhemos construir a nossa casa comum.