Simona Travaglianti vive em Berna, na Suíça. Filha de italianos e detentora de dupla cidadania, ela é uma entre os mais de seis milhões de italianos residentes no exterior. Apesar de sua forte ligação com a Itália, cultural, emocional e linguística, Simona viu-se privada de um direito que sempre considerou natural: o de transmitir a cidadania italiana aos seus dois filhos, nascidos em solo suíço.
A razão? Uma nova legislação aprovada em 2025 pelo Parlamento italiano, conhecida como “Decreto da Cidadania” ou “Decreto Tajani”, em referência ao atual Ministro das Relações Exteriores. A nova regra, convertida em Lei 74/25, modifica drasticamente o modelo de aquisição de cidadania por descendência, o tradicional ius sanguinis, impondo obstáculos que, segundo Travaglianti, “quebram o elo entre gerações”.
“Sou italiana, e meus filhos também. Isso não é uma questão burocrática. É uma identidade construída com histórias, afetos, e a língua que falamos em casa. Um elo importante, que corre o risco de ser rompido. Não está certo.”
Herança negada
Simona pertence à chamada “segunda geração”: nasceu na Suíça, filha de imigrantes italianos. Seu pai, que trabalhou por anos como sazonal, foi obrigado a sair do país por meses todos os anos para manter sua autorização de trabalho. Ao se aposentar, descobriu que essas lacunas nas contribuições previdenciárias o deixariam em situação precária.
“Depois de uma vida inteira na Suíça, ele ouviu: ‘Você ainda é estrangeiro’. Isso o destruiu.”
Agora, a filha enfrenta outro tipo de exclusão, também simbólica, ao ver sua identidade e a de seus filhos deslegitimada por uma nova lei que restringe o direito à cidadania italiana apenas àqueles que cumprem requisitos rígidos e, em muitos casos, inatingíveis.
Reação da diáspora italiana: “Uma ferida profunda”
A reação das comunidades italianas no exterior foi imediata e emocional. Diversas organizações, como a ACLI, os COMITES e o movimento Natitaliani, denunciaram a medida como um “pacto de confiança rompido”. O jornal Corriere dell’Italianità descreveu o cenário como o “fio rompido da ascendência italiana”.
Para os que já iniciaram e muitas vezes pagaram caro por procedimentos de reconhecimento de cidadania, a nova regra chega como um golpe. Alguns já estavam prestes a concluir o processo e se veem agora sem alternativas.
Cidadania como mérito e privilégio?
A nova lei exige que os descendentes tenham “exclusivamente” cidadania italiana para poder transmitir esse direito. Na prática, obriga muitas famílias a escolher entre manter sua identidade múltipla ou garantir um futuro italiano a seus filhos.
O historiador e deputado Toni Ricciardi, eleito pela Circunscrição Europeia, critica abertamente a medida e sua forma de introdução. “Foi apresentada às 18h e entrou em vigor às 23h59. Ninguém sabia de nada. Um decreto de emergência, sem debate público.”
Ele alerta: a justificativa oficial de combater fraudes e aliviar prefeituras sobrecarregadas esconde motivações políticas mais profundas, como o controle sobre o voto da diáspora. “O voto no exterior já decidiu eleições importantes no passado. Isso preocupa quem está no poder.”
Uma virada radical na política migratória
A presidente do Conselho Geral dos Italianos no Exterior, Maria Chiara Prodi, lamenta a ruptura com a tradição italiana de manter laços com sua diáspora. Ela lembra que a antiga legislação era reconhecida como uma das mais generosas da Europa.
“Passamos de uma das leis mais inclusivas para uma das mais rigorosas. Isso não foi fruto de um debate maduro. Faltou visão de futuro, de participação cidadã.”
O relator da lei, deputado Andrea Di Giuseppe (Fratelli d’Italia), defende a medida. Em discurso, declarou que “ser italiano não é um direito automático clicável na internet, mas uma honra”. Para ele, a nova legislação é necessária para conter fraudes e abusos, comparando o sistema anterior a uma “franquia turística” que oferecia passaportes a quem apresentasse dois avós italianos.
Futuro incerto para milhões
Com a Lei 74/25 em vigor, estima-se que milhões de descendentes de italianos, especialmente na América Latina e Europa, perderam ou perderão a chance de solicitar a cidadania italiana. Para muitos, como Simona Travaglianti, trata-se não apenas de um documento, mas de um pertencimento emocional que não pode ser revogado por decreto.
“Não somos números. Somos parte da história da Itália que continua fora de suas fronteiras.”