Imagine você, cidadã ou cidadão italiano reconhecido por direito de sangue, com filhos pequenos nascidos no exterior. Você vai ao consulado registrar seus filhos com a segurança de que eles, naturalmente, têm o mesmo direito que você: serem italianos natos.
Mas agora, sem que uma nova lei tenha sido aprovada, essa transmissão direta da cidadania está sendo negada e substituída por um “benefício de lei”, como se a cidadania fosse uma concessão graciosa do Estado italiano, e não um direito hereditário.
Parece absurdo? Pois é exatamente isso que está acontecendo.
O Que Está Sendo Feito na Prática?
Os consulados italianos passaram a usar o Art. 14 da Lei 91/1992, que diz que os filhos menores de quem adquire ou readquire a cidadania italiana também a adquirem automaticamente, se convivem com o genitor.
Essa regra é claramente pensada para casos de naturalização, não para cidadãos italianos natos que apenas estão registrando seus filhos. Mas agora, estão aplicando esse artigo mesmo quando o pai ou mãe já é italiano nato reconhecido via administrativa por jus sanguinis.
Exemplo real da cliente Julia Martini
Júlia Martini foi reconhecida como cidadã italiana em 2020, por descendência de seu trisavô. Em abril de 2025, ela teve uma filha e solicitou o registro da criança junto ao consulado italiano.
No entanto, ao invés de registrar a filha como cidadã italiana por direito de sangue, o consulado indicou que a menina “adquiriu” a cidadania italiana com base no artigo 14 da Lei 91/1992 ou seja, como se ela não tivesse herdado a cidadania diretamente da mãe, mas a tivesse recebido por concessão do Estado, através de um procedimento derivado.
Como Funciona o Processo Após a Análise da Documentação
Depois que o consulado verificar que toda a documentação está correta tanto do ponto de vista formal (dados, traduções, legalizações) quanto substantivo (conteúdo e vínculos familiares) e confirmar o pagamento da taxa consular, o interessado receberá um Código de Prática (Codice Pratica).
Esse código é essencial para a etapa seguinte: o agendamento do atendimento consular, que deve ser feito pelo portal Prenot@mi, escolhendo o serviço:
“Aquisição da cidadania em benefício da lei (filhos menores nascidos no exterior) – Art. 4, c. 1-bis da Lei 91/1992 e Art. 1, c. 1-ter do DL 36/2025”
Quem deve comparecer ao Consulado?
No dia agendado, é necessário que ambos os pais do menor estejam presentes.
Se o pedido se refere a uma pessoa que era menor de idade em 24 de maio de 2025, mas que já completou 18 anos até o dia do agendamento, ela mesma deverá comparecer ao consulado.
Além da presença obrigatória, é preciso levar:
-
Toda a documentação exigida para o processo (descrita neste artigo: Prenot@mi – Filhos Menores Nascidos Antes ou Depois de 24 de Maio de 2025);
-
E o recibo do pagamento de 250 euros para cada menor a ser registrado.
Verificação final e validação
Durante o atendimento, um funcionário consular responsável pelo setor de Estado Civil fará uma última verificação dos documentos. Estando tudo em conformidade, ele irá validar oficialmente a solicitação, autorizando o registro da cidadania italiana por benefício de lei, conforme o procedimento previsto.
A Tragédia em Efeito Dominó
Se o filho for registrado como tendo adquirido a cidadania por benefício de lei (via derivada), isso significa que ele não é considerado italiano nato.
E então, quando ele tiver seus próprios filhos, a regra do artigo 1, §1-bis da Lei 91/1992 entra em ação:
“Somente será reconhecida a cidadania aos filhos de italianos nascidos no exterior se o genitor tiver residido legalmente na Itália por pelo menos dois anos antes do nascimento da criança.”
Ou seja:
-
O seu neto não terá direito à cidadania, a menos que seu filho vá morar legalmente na Itália por dois anos antes do nascimento do bebê.
E aqui está o ponto central:
A nova interpretação destrói a continuidade do ius sanguinis.
A transmissão da cidadania italiana se torna condicionada a uma residência futura na Itália, algo impensável até então. Isso gera uma quebra silenciosa e gradual da linhagem italiana no exterior.
Onde Isso Vai Levar?
Se esse entendimento for mantido, milhares de crianças nascidas fora da Itália serão os últimos italianos de sua linha. Seus netos não poderão mais ser reconhecidos.
Essa regra, aparentemente técnica, é uma bomba-relógio jurídica e civil.
Por Que Juristas Estão Chamando de Aberração?
-
Violação do princípio do ius sanguinis:
A cidadania por descendência sempre foi originária, transmitida automaticamente. -
Confusão de institutos jurídicos:
O artigo 14 se refere à naturalização de filhos menores em caso de aquisição da cidadania, e não se aplica aos filhos de italianos já reconhecidos como tais. -
Inconstitucionalidade silenciosa:
Ao criar uma “segunda categoria” de italianos os que são “beneficiários”, e não “natos” a nova interpretação viola o princípio da igualdade previsto na Constituição Italiana. -
Ausência de respaldo no direito comparado:
Não há, no direito europeu, nenhum país que rebaixe filhos de nacionais ao status de estrangeiros que “adquirem” a nacionalidade dos pais por favor da lei.
Um Direito que foi Silenciado
O que está em jogo vai muito além de uma questão técnica ou burocrática. Trata-se de uma mudança sutil, mas profunda, que compromete a continuidade do vínculo jurídico e simbólico entre a Itália e seus descendentes espalhados pelo mundo. Ao reinterpretar a cidadania de filhos menores como um “benefício de lei”, o Estado italiano inaugura, sem alterar a legislação, um novo regime de exclusão silenciosa capaz de romper, geração após geração, o fio que une famílias inteiras à sua origem.
É importante reconhecer que a lei em si não mudou. O que mudou e nos preocupa é a forma como ela vem sendo aplicada, com impactos concretos no futuro de milhares de famílias. Não se trata de pedir privilégios, mas de defender um direito historicamente reconhecido e coerente com os princípios do ius sanguinis.
Aceitar essa distorção como algo normal seria legitimar o enfraquecimento progressivo da cidadania italiana fora da Itália. Por isso, é fundamental informar, questionar, agir seja por vias administrativas, jurídicas ou políticas.
O compromisso com nossas raízes exige vigilância e responsabilidade. Preservar a cidadania italiana é também preservar a memória, a identidade e a continuidade de quem somos hoje e amanhã.