No século XX, o estudioso britânico T.H. Marshall destacou que a cidadania não se limitava ao direito de voto ou à residência legal. Segundo ele, incluía também a igualdade de oportunidades educacionais, profissionais e culturais. Na Itália, essas dimensões frequentemente permanecem inacessíveis para estrangeiros e naturalizados. Mesmo quando “em ordem” com a lei, muitos vivem sob um escrutínio constante.
A visibilidade do imigrante
A visibilidade do imigrante naturalizado é uma das contradições mais dolorosas do sistema italiano. Em contextos públicos, privados e profissionais, o corpo “diferente” fala antes da pessoa. Indivíduos negros, árabes, asiáticos ou de outras origens não brancas frequentemente são vistos como estranhos ou suspeitos, obrigados a explicar sua presença, justificar seu italiano, suas qualificações e até seu comportamento. Esse é um eterno questionamento de identidade.
Identidade ferida
Segundo estudos de migração e psicologia social, essa exposição constante gera o que alguns pesquisadores chamam de identidade ferida: a sensação de pertencer a um país sem, de fato, ser reconhecido como parte dele. Frustração, exclusão e até raiva são sentimentos comuns entre aqueles que mais investem em sua integração, como cidadãos engajados que participam da vida pública, pagam impostos e educam seus filhos na italianidade.
Contradições da política italiana
A política italiana permanece ambígua. Embora proclame a necessidade de integração, a legislação e o discurso público muitas vezes reforçam a distinção entre nós e eles. A demora na reforma da lei de cidadania, que poderia reconhecer os direitos das crianças imigrantes nascidas ou criadas na Itália, evidencia essa contradição. As chamadas segundas gerações crescem no país, mas continuam tratadas como hóspedes temporários, suspensas entre a terra natal de seus pais e um país que ainda as vê como externas.
A mídia e a narrativa sobre imigração
A mídia contribui para esse cenário ao retratar a imigração quase sempre como emergência ou problema. A imagem do imigrante é frequentemente associada à criminalidade, marginalização e decadência urbana, enquanto raramente são mostrados professores, médicos, engenheiros ou pesquisadores de origem estrangeira. Essa narrativa única reforça medo, desconfiança e distanciamento social.
Sinais de resistência
No entanto, há sinais de resistência. Professores que defendem alunos de origem estrangeira, empregadores que promovem diversidade e cidadãos que se indignam com o racismo representam uma Itália plural e emergente. Jovens mestiços, presentes nas escolas, universidades e bairros, são a semente de uma mudança cultural e social.
Para avançar, a Itália precisa de coragem política e cultural. É necessário romper com a hipocrisia que tolera a integração apenas quando silenciosa e invisível. Ser italiano não deveria depender de características físicas ou sobrenomes, mas de valores, experiências e projetos compartilhados. A cidadania precisa ser vivida plenamente, não defendida diariamente como privilégio a ser justificado.
Como conclui Yuleisy Cruz Lezcano, poetisa e ativista cubana residente em Marzabotto, “o futuro da Itália não pode deixar de ser plural. Mas, para realmente se tornar plural, o país precisa primeiro aprender a ver seus cidadãos naturalizados não como exceções, mas como parte integrante de sua identidade coletiva”.
Só assim aqueles que hoje se sentem estrangeiros em sua própria terra poderão finalmente se sentir italianos, com direitos e dignidade plenos.
Referências:
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Ambrosini, Maurizio; Panichella, Nazareno. A integração subalterna persiste: desafios e tendências do modelo italiano de inclusão de imigrantes no mercado de trabalho. FrancoAngeli, 2025.
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Marshall, Thomas Humphrey. Cidadania e Classe Social, edição de S. Mezzadra. Laterza.