O debate em torno da cidadania italiana por ius sanguinis (direito de sangue) ganhou novas camadas de complexidade nos últimos anos, especialmente diante da pressão crescente sobre consulados e tribunais causada pelo aumento expressivo de pedidos de reconhecimento da cidadania por descendência. A razão? A legislação italiana, ao reconhecer de forma ilimitada a cidadania por laços de sangue, mesmo após diversas gerações no exterior, gerou um aparente conflito entre o conceito formal de cidadania e os princípios fundantes da Constituição Republicana.
O Cerne da Questão: Soberania e Identidade Nacional
O ponto central das críticas dos tribunais de instância inferior está no entendimento de que o conceito de povo, tal como previsto no artigo 1º, §2º, da Constituição italiana “A soberania pertence ao povo” não pode ser esvaziado de sentido. Se a cidadania é o elo jurídico que define quem pertence ao povo italiano, é necessário que ela esteja ancorada em vínculos reais com a comunidade nacional.
Segundo as decisões judiciais mais recentes, a cidadania não é apenas um direito subjetivo individual; ela carrega uma dimensão comunitária e pública. Pertencer a um Estado implica mais do que ter um sobrenome italiano ou um ascendente nascido em solo italiano, implica também integração, participação, relacionalidade, proximidade com o território e com o corpo social italiano.
A Incompatibilidade com os Princípios Constitucionais
A legislação vigente, ao permitir o reconhecimento da cidadania italiana por descendência sem limite geracional ou comprovação de vínculo concreto com o país, criou segundo os tribunais uma cisão entre o conceito formal de cidadania (fundado no sangue) e seu significado substancial (fundado no pertencimento). Essa desconexão comprometeria, portanto, o próprio princípio da soberania popular.
O conflito foi considerado também desproporcional e irracional à luz do artigo 3º da Constituição, que consagra o princípio da igualdade. Afinal, enquanto o descendente distante pode ser reconhecido como cidadão italiano sem sequer falar o idioma ou jamais ter visitado o país, o estrangeiro residente na Itália ou cônjuge de italiano precisa cumprir exigências como residência contínua ou conhecimento linguístico.
Além disso, o artigo 117, §1º, da Constituição que obriga o respeito às normas e vínculos decorrentes da ordem jurídica europeia foi invocado para alertar sobre os efeitos desse reconhecimento automático: uma cidadania italiana ilimitada resulta, automaticamente, na concessão da cidadania europeia. Isso cria uma situação em que milhões de pessoas sem qualquer conexão real com o Estado italiano desfrutam dos direitos previstos pelo artigo 20 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), como livre circulação e proteção diplomática.
A Intervenção do Tribunal Constitucional e o Limite da Jurisdição
Apesar da gravidade das contradições apontadas, o Tribunal Constitucional italiano declarou inadmissível sua própria intervenção para corrigir o problema de maneira unilateral. A Corte reconheceu que limitar o ius sanguinis por meio de uma decisão judicial seria uma escolha demasiadamente política e discricionária, uma intervenção “manipuladora” em um campo reservado ao legislador.
Contudo, o Tribunal fez algo talvez mais importante: levantou com ênfase a questão, apontando para a necessidade urgente de um novo equilíbrio jurídico-político sobre a definição do povo italiano. O tribunal não solucionou o problema, mas colocou a responsabilidade nas mãos do Parlamento.
O Que Pode Mudar?
Dentre as sugestões levantadas pelos tribunais de referência, estão:
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Limite geracional: reconhecer a cidadania apenas até a segunda ou terceira geração de descendentes;
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Exigência de residência mínima em território italiano;
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Comprovação de vínculo efetivo com o país, por meio da língua, cultura ou integração social;
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Aplicação de critérios análogos aos exigidos para naturalizações por casamento ou residência.
Todas essas opções partem do mesmo pressuposto: a cidadania não pode ser um título esvaziado de sentido, outorgado a pessoas sem qualquer laço com a vida coletiva do país.
Uma Oportunidade Histórica para Redefinir a Cidadania
A decisão judicial em questão, embora aparentemente limitada, é provocativa e simbólica. Ao reconhecer que o direito atualmente em vigor não se alinha aos valores constitucionais contemporâneos, o Tribunal sinalizou que o tempo da mudança chegou. O Parlamento italiano, agora pressionado pelas evidências concretas e pelos argumentos jurídicos, é convocado a repensar o equilíbrio entre tradição e realidade.
A pergunta que paira no ar é profunda: quem somos, enquanto povo italiano, no século XXI?
Responder a essa pergunta exigirá coragem legislativa, respeito aos vínculos históricos e, sobretudo, um olhar atento para o que significa pertencer a uma comunidade nacional em um mundo globalizado.