Com a conversão do Decreto Legislativo nº 36/2025 na Lei nº 74/25, a Itália deu um passo decisivo e polêmico, na direção de uma reforma restritiva da cidadania por descendência, que atinge diretamente os cerca de 6,1 milhões de cidadãos italianos residentes fora do país, especialmente na América Latina e na Suíça. Em vigor desde 28 de março de 2025, a nova legislação introduz critérios mais rígidos para o reconhecimento da cidadania italiana a filhos nascidos no exterior, quebrando uma tradição de forte ligação entre a Itália e sua diáspora.
O que muda com a Lei 74/25?
Antes da nova norma, o princípio do ius sanguinis (“direito de sangue”) garantia, na prática, que filhos de cidadãos italianos nascidos fora do país herdassem automaticamente a cidadania, mesmo quando a família já estivesse há gerações fora da Itália. Com a nova lei, isso muda radicalmente.
Agora, não é mais suficiente ser cidadão italiano para transmitir a cidadania aos filhos nascidos no exterior. A nova regra impõe requisitos adicionais, como a ausência de outra cidadania por parte do transmissor no momento do nascimento da criança ou a necessidade de comprovar um “vínculo efetivo e contínuo” com a cultura e a vida pública italiana um conceito jurídico vago e de difícil comprovação.
Essas exigências afetam, sobretudo, cidadãos com dupla cidadania, que agora podem ser impedidos de passar adiante sua identidade italiana, criando o que especialistas chamam de “apagamento jurídico das raízes familiares”.
Impactos imediatos: Exclusões e Frustração
A aplicação da lei tem caráter retroativo, com prazo-limite estabelecido em 27 de março de 2025 para o protocolo de pedidos de reconhecimento. Famílias que já haviam iniciado o processo muitas vezes enfrentando filas consulares de anos e custos elevados com traduções e certidões foram pegas de surpresa e agora veem seus esforços interrompidos.
Segundo relatos de associações como ACLI, Comites e o coletivo “La Voce degli Italodiscendenti”, que já coletou mais de 100 mil assinaturas contra a medida, milhares de famílias foram prejudicadas. “É um corte violento com a nossa história e com nossas comunidades no exterior”, afirma Alessandra Vianello, presidente de um Comites na Argentina.
Protestos Internacionais e Resposta Política
A medida provocou manifestações em frente a embaixadas e consulados italianos em diversos países. Na Suíça, que abriga a segunda maior comunidade italiana fora da Itália, protestos em Genebra e Zurique reuniram centenas de famílias. No Brasil, Argentina, Uruguai e Estados Unidos, o sentimento é de indignação e traição institucional.
Embora o presidente Sergio Mattarella tenha assinado o decreto, ele pediu uma “consideração ponderada e alguma reconsideração” do Parlamento, em uma rara crítica velada ao governo e ao ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani, autor da proposta. Tajani defende a medida como forma de “modernizar” a legislação e “garantir uma cidadania mais consciente e participativa”, mas enfrenta resistência crescente dentro e fora da Itália.
Mais de 300 emendas parlamentares já foram apresentadas, e uma batalha judicial começa a se desenhar: escritórios de advocacia internacionais preparam ações no Tribunal Constitucional, alegando violação de direitos fundamentais e da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Fiscalização e Incerteza Jurídica
Como parte da nova estrutura, o governo anunciou a criação de uma “Direção Geral da Cidadania”, com sede em Roma, responsável por supervisionar e inspecionar os pedidos de reconhecimento da cidadania. O temor de organizações comunitárias é que isso resulte em ainda mais burocracia, arbitrariedade e exclusão.
Enquanto isso, milhares de famílias vivem em um limbo jurídico: entre a esperança de uma eventual reversão da lei e a dura realidade de ver suas raízes italianas questionadas por um decreto que muitos consideram injusto e discriminatório.
A Lei 74/25 representa uma mudança profunda na relação da Itália com seus descendentes no exterior, colocando em xeque o reconhecimento automático de uma cidadania que, por décadas, foi símbolo de pertencimento, mesmo à distância.
Se a pressão internacional surtirá efeito ou não, ainda é cedo para dizer. O que é certo é que o debate sobre cidadania, pertencimento e herança cultural entrou em uma nova fase uma que promete ser longa, conflituosa e carregada de consequências políticas e humanas.